Caros amigos,
Não sei vocês, mas têm dias que amanheço compreensivo; tolerante; sem crise; acreditando na boa intenção das pessoas ou, simplesmente, entendendo que todos têm suas dificuldades e limitações que devem ser respeitadas etc.
Já, noutros dias, pra mim tanto faz! Não me importa se alguém tem um problema ou está passando por dificuldades. O que me interessa é que não me perturbe, quero é que me erre! E, até mesmo quando me acertam, faço de conta que não é comigo e sigo em frente.
Porém, num belo dia (6/8/6) não foi, nem de um jeito, nem de outro!
Acordei num daqueles dias em que o justo é que todos me respeitem como eu respeito a todos! Nesses dias, nada mais lícito do que defender com unhas e dentes todas as minhas razões. Afinal, como se diz, o seu direito termina onde começa o direito do coleginha.
Assim, logo cedo, armei-me de minhas sete pedras e com elas em punho fui pra vida, não disposto a agredir ninguém gratuitamente, não se não fosse provocado, por que desaforo não se leva pra casa, claro!
Veja-se, apesar da sanha nos olhos, em mente só tinha intenções retas, tanto que, nesse dia, mais do que de costume, preocupei-me em ser o mais correto, respeitoso e cortês; não me permiti, sequer por culpa (negligência, imperícia ou imprudência), quanto menos por dolo (intencionalmente), invadir o espaço alheio. Fui além... como sucede com a mulher de César, mais que honesto, fiz-me aparentar honesto.
Porém, o dia correu mais tranqüilo do que inicialmente imaginara. Fui ao parque da cidade com as gatas aqui de casa; praticamos tae chi (essa, pelo menos, foi a intenção!); tomamos água de coco; no almoço, deliciosa massa com molho de tomate e ervas finas, cervejinha... e que belíssimo sono depois da bóia!
Tudo isso, claro, amainou consideravelmente a minhas disposições e suavizou o meu semblante.
Então! Tudo muito bom, tudo muito bem, mas ainda tinha que ir ao supermercado, às compras da semana.
E lá fui eu. Seção de carnes; horti-fruti (estavam ótimas!); cereais; laticínios etc; seguindo minha lista fielmente, sem ceder às armadilhas traiçoeiras do consumo. Enfim, o fim. Terminei e me dirigi ao caixa preferencial, pois estava com a Julinha (sic, com sotaque).
Eis que dei azar! Pois não é que, quando percebi, encontrava-se à minha frente (na fila) uma daquelas peruas toda emperequetada, cheia de jóias, falando no seu motorola, gesticulando com ares de soberba e olhando todos do alto para baixo.
Como é que uma sujeita daquela tinha tamanha cara-dura? Numa fila preferencial; sem motivo para tal; e na frente de uma pessoa (eu) com criança de colo e de uma senhora de idade, a quem, aliás, eu já tinha dado a vez.
Absurdo! Completo desrespeito! Imperdoável!
Nesse momento, já tinha esquecido todo o bem que aquele dia agradável tinha me feito e a hostilidade matinal devolveu-me o aspecto azedo-esverdiado. Armei-me novamente das minhas pedras, as quais ainda trazia no bolso perto do peito, e, em posição de ataque, investi contra aquela que parecia ser a mais justificável das vítimas.
Aliás, vítima nada! Mas sim, injusta agressora que sem o menor pudor afrontava o direito alheio.
Na verdade, em relação às transgressões de fila, há muito tenho uma opinião formada. Pra mim, aquele que fura uma fila ou desrespeita as preferências estabelecidas em lei ou impostas pelo bom senso, demonstra total desprezo pelos seus semelhantes e é capaz de qualquer atitude vil, quem sabe, talvez, até matar ou roubar...
Continuando... dirigi-me à transgressora, com necessária educação, porém com a firmeza que a situação demandava e, implacavelmente, ordenei que saísse daquela fila, pois ela não tinha direito de ali estar, dizendo ainda que a sua conduta é digna de um abjeto, era verdadeiramente execrável e que ela deveria se envergonhar do que estava fazendo etc! Isso mesmo! E coisa... e tal...
Contudo, qual não foi a minha surpresa?
Ela olhou pra mim com consternação sem tamanho e, quase sem voz, desculpou-se com uma humildade desconcertante, afirmando que tinha se enganado, pois não tinha visto a plaqueta indicativa de caixa preferencial etc.
Só então, vi o que a minha prepotência tinha impedido, que aquela senhora, de fato excessivamente bem vestida, estava um tanto transtornada e que, pelo visto, tinha algo a ver com o assunto tratado ao celular, o que certamente a levou ao erro.
E, ao passo em que ela se afastava da fila renovando as escusas, aquela minha altivez e foi cedendo lugar ao sentimento de “putz, v a c i l e i”!
Aí, já se viu a situação: aqueles olhares de reprovação que antes fitavam a fura-fila, voltaram-se, mais severos ainda, para mim; e eu não sabia se continuava com o peito estufado e cheio de razão ou externava o “putz, v a c i l e i”!
Francamente, nem sei o que fiz, dei um jeito de me desvencilhar o mais rápido possível do pagamento das compras e, mudo, surdo e sego, retirei-me do recinto.
No caminho de volta pra casa, intimamente, ainda caí na besteira de tentar justificar a minha atitude, pois... eu estava coberto de razão, tanto assim, que só o fato de a mulher ter se desculpar e saído bastava para atestar a minha correção.
Mas logo me dei conta de que não basta ter razão, não basta ter direito, é necessário que se tenha o mínimo de razoabilidade e autocrítica e de maneira preventiva, principalmente! Não se pode ceder à arrogância dos justos, pois orgulho do homem santo é o que o arrebata do céu.
Em verdade, a minha conduta, longe da de um homem justo, revelou-se típica de um justiceiro que, em essência (somente talvez em grau) não discrepa do inquisidor que queimava bruxas, ou, em termos mais atuais, dum radical religioso, que em nome de tudo o que é certo, de tudo o que é belo e de tudo o que é sagrado, explode uma bomba atada ao próprio corpo e mancha de sangue e terror a vida de inocentes, ou, mesmo, da de Davi que agora, gigante, vai a forra contra milhares de Golias inocente no sul do Líbano.
Exagerado? Pode ser. Afinal não matei ninguém.
Mas o fato serve para evidenciar como se pode cometer enormes injustiças, mesmo quando não se quer nada mais do que a própria justiça, seja em nome da fé, da cidadania, da família ou de qualquer outro nobre valor.
Ocorre é que fui eu quem desrespeitou um dos mais sagrado direito do ser humano, o direito fundamental de errar. Pois quem não erra?
É como diz a canção: “...Já não tenho dedos pra contar / De quantos barrancos despenquei / E quantas pedras me atiraram / Ou quantas atirei...” (Lulu Santos).
E quem nunca errou que atire a primeira pedra!
Fica, então, a reflexão para esse feriado de carnaval.
Fraterno Abraço a todos.